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sábado, 5 de setembro de 2020

Forte odor de "fake news"

 Por Almir M. Quites


Recebi pelo WhatsApp a notícia de um aerossol ("spray") à base de coloides de álcool e de prata, desenvolvido pela empresa de Florianópolis, a TNS Nanotecnologia, incubada no CELTA, que, após 3 minutos espargindo um ambiente, eliminaria dele 99,99% dos vírus da CoViD-19 e seu efeito duraria 7 dias. "NANOTECNOLOGIA VERSUS COVID-19!", anuncia a mensagem. 


Recebi também o vídeo abaixo, no qual o mesmo produto é anunciado pela TV Record, mas informa que foi desenvolvido por uma empresa de Ribeirão Preto, não de Floripa, como indicava a notícia anterior. O produto teria sido aprovado pelo IPT/USP e pela Unicamp, mas os laudos mostrados não são legíveis. Aparece também a virologista Clarice Arns elogiando o produto, mas ela não diz claramente que ele seja efetivo contra o vírus da CoViD.


Estas duas postagens me preocupam, porque têm tudo para ser "fake news" e também porque indicam que o produto já está disponível no mercado.

Não ficou claro como eles podem ter certeza (nos testes) de que o vírus foi mesmo eliminado por completo do ambiente. Além disto, chamou-me à atenção o fato do laudo do Laboratório de Biologia da Unicamp dizer que o produto elimina todos os "micro-organismos", porque o Sars-Cov-2 é nano-organismo, logo muito menor que um micro-organismo. A dimensão do vírus é, em torno de 100 nanômetros.

Por enquanto, eu não confiaria neste produto! Acho que é muita irresponsabilidade fazer pouco testes e já vender em larga escala para a população. Afinal, que testes fizeram sobre o efeito deste spray sobre o ser humano? Para venda de algo assim para a população deveria haver a necessidade de testes independentes em larga escala. É a vida humana que está em jogo. É a saúde da população.

Fico muito apreensivo quando vejo a disseminação de informações que mais parecem propagandas (propaganda sempre é mentirosa). Especialmente quando estas informações conflitam entre si ou com o que conheço de ciência. Quando isso acontece, irrompe em mim uma sensação bem desagradável! Sinto odor de falsidade! O pior é que envolve três universidades, a USP, a Unicamp e a minha, onde trabalhei toda a minha vida como professor e pesquisador, a UFSC! Aguardo esclarecimentos. 

Explico melhor. Por exemplo, a notícia afirma que o "spray é um pó seco". O que pode ser este "aerossol seco de álcool 70%" (deve ser o etanol) e prata coloidal? Afinal, o que é álcool seco? É o alcool gél? Começa que todo o gel é um coloide! Confesso que não entendo isso! Não está claro qual é o dispersante. Ao secar o álcool, sobra o que como dispersante? Se for álcool gel, perde-se todo o álcool e sobra apenas o estabilizador carbômero. Bem, fico pensando, pode ser apenas um linguajar impreciso da propaganda!

A prata eu conheço. É o elemento químico Ag, de número atômico 47. A intoxicação por prata chama-se argiria (descoloração permanente da pele). Seus sais, que eu saiba, não são muito perigosos, mas, se absorvidos, permanecem no sangue até se depositarem nas membranas mucosas, formando uma película acinzentada. Até o final do século passado, os nitratos de prata eram usados como anti-sépticos em irritações localizadas, inclusive nas mucosas da boca e garganta. No entanto, revisões científicas constataram que sua eficácia era inferior a de outros anti-sépticos mais seguros e seu uso foi abandonado. 

A chamada prata coloidal consiste de nano-partículas de prata pura em um líquido. Foi usada pela chamada "Medicina alternativa", hoje muito promovida nas redes sociais. Na verdade, a prata coloidal pode ser perigosa para a saúde. Além da argiria, causa a má absorção de antibióticos e de tiroxina. O FDA oficialmente alertou, em 1999, que a prata coloidal não é segura ou eficaz para tratar qualquer doença.

Acho bom manter todo o cuidado. O tempo dirá se este "spray seco" funciona mesmo contra o vírus da CoViD ou se é outra malandragem de aproveitadores que querem faturar com a pandemia.

A chamada da notícia já me acende o alerta, porque é típica de marqueteiros: NANOTECNOLOGIA VERSUS COVID

Ora, convivemos com átomos, somos feitos de átomos, usamos os átomos e isto não significa que estejamos utilizando a Física Atômica. Da mesma forma, convivemos com nano-partículas. Elas estão em nossos próprios corpos. Usamos nano-partículas e isto também não significa que estejamos utilizando a Nanotecnologia

O conhecido álcool gel é um sistema coloidal de nano-partículas. Sistemas coloidais estão presentes no nosso cotidiano, na higiene pessoal (sabonete, 'shampoo', cremes dentais, espuma, creme de barbear, maquiagem, cosméticos), na nossa alimentação (no leite, café, manteiga, cremes vegetais e geléias de frutas, temperos, cremes e maionese para saladas); na atmosfera (na neblina, na poluição do ar) etc. Ao saborear cerveja, refrigerante ou sorvete estamos ingerindo colóides. Temos importantes colóides dentro de nós (no sangue, no humor vítreo e no cristalino).

O vídeo diz que o aerossol de prata coloidal elimina os vírus de um ambiente em 3 minutos de nebulização, mas não diz como isto foi testado. Também não diz nada sobre os riscos de inalação deste aerossol. Diz apenas que não é tóxico.

Para testar este produto seria preciso identificar e quantificar a presença do Sars-CoV-2. 

No seriado ficcional “Jornada nas Estrelas” (Star Trek), os profissionais de saúde eram capazes de determinar instantaneamente se havia vírus em concentração perigosa em qualquer ambiente, bastando acionar um "tricorder" (dispositivo manual para fazer uma varredura do ambiente e interpretar os dados digitalizados em chip ótico isolinear). Essa tecnologia, imaginada há 60 anos, ainda não está disponível no mundo real. No entanto, outros dispositivos estão em desenvolvimento em vários laboratórios de pesquisa do mundo.

O SARS-CoV-2 (o vírus que causa a Covid-19) pode se espalhar de pessoa para pessoa pelo ar e pelo contato com superfícies contaminadas. 

A detecção da presença do vírus no ar é complexa, devido mistura em que se encontra com mais de mil outras partículas, das quais, uma fração significativa é biológica. Portanto, o ar de um ambiente é, ele mesmo, um aerossol cheio de organismos vivos e mortos, incluindo vírus, bactérias, fungos, pólen e restos de plantas e animais. O Sars-CoV-2 é a menor dessas partículas. Seu tamanho varia de 10 a 200 nanômetros, ou milionésimos de milímetro. Os glóbulos vermelhos, por exemplo, têm em média cerca de 6 a 8 mícrons; as bactérias variam de 1 a 4 mícrons e os fungos de 5 a 10 mícrons. 

Para entender a ameaça potencial dos ambientes contaminados (os bioaerossois) é importante identificar a pequena fração de micróbios problemáticos ou patogênicos entre todos os presentes no ar e superfícies e também quantificá-los. Para identificar o Sars-CoV-2 e também quantificá-lo, é muito mais difícil. Causa-me estranheza quando dizem que a Unicamp atesta que, em 5 segundos, 99,99% do vírus foi eliminado! 

Tomara que eu esteja errado nesta minha análise!

O que fazem é fazer um spray de álcool. Para dar um "up", para valorizar a idéia, dispersam nanopartículas no álcool gel, obtidas por métodos químicos, como o conhecido Pechini, de custo relativamente baixo. Usam nanoparticulas de prata, mas poderiam usar partículas de cobre, bronze, zinco, latão, antimônio, nióbio, arsênico, bário, bismuto e muitos outros (especialmente os metais pesados), que liberem íons capazes reagir com gorduras.

Que eu saiba, a identificação dos vírus de um bioaerossol começa com a captura de partículas biológicas do ar, normalmente coletando partículas em um filtro, em um frasco de líquido ou em hidrogéis. Depois, um laboratório analisa a amostra. Esse processo pode levar vários dias e a quantificação é muito imprecisa. 

Cada vez mais, os cientistas estão confiando em análises baseadas em genes para mapear vírus. 

A técnica hoje mais comum consiste em promover uma reação enzimática catalisada (polimerase), em cadeia, para replicar genes para que a sequência genética (RNA) possa ser detectada em uma amostra. Essa técnica é a mesma atualmente usada para detecção do Sars-CoV-2 em amostras de cotonetes nasais. Os métodos baseados em PCR são muito precisos na identificação de patógenos, mas imprecisos na quantificação.

Apesar desses avanços, ainda há muito trabalho a ser feito para conseguir identificar instantaneamente a presença de patógenos no ar.

Para micróbios e patógenos, avanços recentes talvez levem ao desenvolvimento de sensores que possam fornecer informações rápidas sobre bioaerossóis em tempo real, embora não diferenciem entre um micróbio seguro e outro nocivo. Estas técnicas, no entanto, não se aplicam à detecção de vírus, incluindo o Sars-CoV-2, porque os vírus são muito pequenos, o que torna difícil coletá-los de amostras de ar e realizar análises de PCR, devido à pequena quantidade de DNA / RNA.

Sabe-se que pesquisadores suíços estão desenvolvendo um novo tipo de sensor para detectar o vírus Sars-CoV-2. Espera-se que, no futuro, seja possível medir a concentração do vírus na área circundante, por exemplo, em locais onde se encontram muitas pessoas ou nos sistemas de ventilação de hospitais.

Embora o equivalente ao "tricorder" de “Jornadas nas Estrelas” ainda não exista, sua necessidade nunca foi tão grande.

Por enquanto, acho que o mais seguro mesmo é uma boa lavação com água e sabão! 

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