Em tempo de Rock in Rio já não dá para assistir um noticiário televisivo sem que a histeria coletiva (aliás em boa parte gerada pela própria mídia televisiva) daquele evento invada a tela de nossos televisores. A hipótese subjacente é a de que todos veneramos o som estridente das guitarras, a mesmice do batuque ensurdecedor das baterias, os berros guturais dos crooners, seus pulos e movimentos bestificados, tudo isto envolto por uma parafernália diabólica de luzes dilacerantes e amplificado até que o som deixe de ser apenas uma sensação auditiva e atinja o limiar da dor, como um impacto físico.
Júlio Cesar disse que, se quisermos dominar um povo, que ele seja dominado pela cultura alienante. Eu acrescento: que esta dominação seja preferentemente dirigida aos jovens. Que se escamoteie dos jovens as formas mais profundas de cultura, de mais difícil consumo, para que eles nem sequer imaginem que, para além do universo do Rock, existe o universo da música, direcionada ao intelecto, à profunda satisfação interior e à conexão de neurônios.
Deixo para a pena brilhante de Pompeu de Toledo descrever o resto. Ele pegou, como pano de fundo, os shows do U2 e dos Rolling Stones, mas o texto poderia ter como base o Rock in Rio.
José J. de Espíndola.
Histeria, patetice e rock’n’roll
(Roberto Pompeu de Toledo, Veja 01/03/2006)
A infausta passagem pelo Brasil de dois famosos conjuntos de rock deu ensejo a que os meios de comunicação em geral, a televisão em particular, se dessem com gosto e empenho a uma de suas práticas prediletas – a de incitar a histeria e/ou idiotia da população. “O que você vai sentir quando eles entrarem no palco?”, perguntava a repórter, esticando o microfone para um grupo de mocinhas, instantes antes do show do grupo U2. “Vou morrer”, disse uma. “Vou surtar”, disse outra, tudo entre gritinhos e pulinhos. Era o que a repórter queria ouvir. Morrer, surtar – que delícia! Volta para o estúdio, e os apresentadores do telejornal sorriem, satisfeitos como um político do PSDB depois de esvaziar uma garrafa de Amarone della Valpolicella, corte Sant’Alda, safra 1995, no restaurante Massimo.(*)
Dias antes dos shows, como é de rigor, já havia pessoas acampadas nos locais onde aconteceriam. Imagina-se o desconforto desse novo povo das ruas, a dormir mal, comer pior e sofrer os efeitos dramáticos da falta de um banheiro. Alguém dotado de um mínimo de espírito humanitário procuraria encaminhar essas pessoas a um tratamento psicológico. Não os meios de comunicação. Estes se deleitam diante de tais faquires do universo pop. “Há quanto tempo vocês estão aqui?”, pergunta-lhes o repórter. “Dois dias? E o outro lá – três? E o outro cinco?” E é um maravilhamento só. “Vale a pena?” “Vale, qualquer sacrifício vale”. E a televisão exalta o exemplo desses jovens que deixam tudo, conforto, estudo, trabalho, em honra dos ídolos. São os nossos muçulmanos, em tempo de hajj, quando vale qualquer sacrifício, inclusive morrer pisoteado, para visitar os lugares do profeta.
O líder dos Rolling Stones marcha com passos enérgicos de um lado para outro do palco, move os braços de modo decidido, nunca sorri. Abstraia-se o som infernal e, se aquilo fosse cinema mudo, teríamos a cena de um recruta que se perdeu do regimento e procura desesperadamente o rumo, no meio do campo de batalha. Ou, então, a ação de uma dona-de-casa enraivecida, andando de um lado para outro da casa, a mostrar à faxineira como ela fez tudo errado. Não, ninguém está lá para tapar os ouvidos e brincar de cinema mudo. Na verdade essas pessoas estão lá para algo que vai além de ver ou escutar – adorar. “Agora ele se aproxima do público”, conta o repórter. “Vai ser o delírio” É o delírio. Se não fosse a presença das câmeras de TV, talvez não se configurasse delírio tão delirante. A TV e o delírio têm tudo a ver.
O líder dos Rolling Stones, na boa tradição do rock, é um nulo em matéria de política, Um “alienado”, como se dizia, numa ofensa pior do que xingar a mãe, na época em que ele era jovem. Já Bono, do U2, se entrega à militância em favor de todas as boas causas, tantas que alguém lhe precisaria dizer: “Calma, rapaz! Assim nem Madre Teresa de Calcutá...” Ele considera que o presidente Lula estás fazendo muito para diminuir a fome e a pobreza no mundo. Com isso, aumentou em 100% a quantidade de pessoas que partilham desse pensamento – agora ele se soma ao próprio Lula. Ao ir ao encontro do presidente brasileiro, Bono disse que visitar Brasília sempre fora seu sonho. Como? Alguém pode ter o sonho de visitar Brasília? Ou o rapaz está mal, muito mal de sonhos, ou foi insincero. E, se foi insincero nesse ponto, será também nas causas que defende...
Não. Afastemos as suspeitas descabidas. Importante é que ele chamou uma mocinha de Volta Redonda para dançar no palco. “Que sortuda”, exclamou a apresentadora do telejornal. A apresentadora aparentemente gostaria de estar no lugar da mocinha. Ou talvez não. Talvez o que ela quisesse era mostrar que também estava no clima. Não cabiam dissensões. A TV empenhava-se em fazer crer que era saudável, bonito e razoável que todos os brasileiros reagissem com efusões desmesuradas, quanto mais desmesuradas melhor, à presença dos ídolos do rock. O marido da mocinha de Volta redonda disse que não teve ciúme, nem quando ela afagou o queixo do cantor, bem apertadinha, nem quando lhe sapecou um beijinho na boca. “Fã é assim mesmo”, disse. A mocinha, naquele momento, era o retrato do ser humano subjugado. Desceria aos infernos com seu ídolo, o seguiria nas batalhas mais espinhosas pela justiça no mundo, juntaria à dele a voz pelo hexa do Brasil e pela glória da irredenta Irlanda. Fã é assim mesmo.
Bono, portento de tolerância que é, uniu os símbolos do cristianismo, do judaísmo e do Islã na mesma faixa enrolada à testa. Em outro momento, recitou os nomes dos países da América Latina, e, quando falou “Argentina”, o público vaiou. A plateia provou que, em matéria de tolerância, não é digna de Bono. Em compensação, os coleguinhas de escola do filho brasileiro de Mick Jagger, o homem dos Rolling Stones, mostraram que estão no clima. Quando Jagger apareceu por lá, causou muito tumulto. Provou-se que as lições da TV estão sendo bem aproveitadas. A histeria e a parvoíce já se implantaram entre as novas gerações. Com isso está garantida sua continuidade.
**José J. de Espíndola
**José J. de Espíndola
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* O tal político do PSDB a quem o autor se refere é FHC. Ele marcara uma reunião no restaurante Massimo para decidir, manu militari, quem iria competir com Lula à presidência da República. Fez tudo errado. Mas o vinho escolhido é excelente e a safra considerada excepcional.
** Sobre o autor da postagem
José J. de Espíndola é Ph.D. (Dr.) pelo Institute of Sound and Vibration Research (ISVR) da Universidade de Southampton, Inglaterra. Foi agraciado com o título de Doutor Honoris Causa pela UFPR. É Membro Emérito da ABCM (Associação Brasileira de Engenharia e Ciências Mecânicas) da qual recebeu o Prêmio Engenharia Mecânica Brasileira, “em reconhecimento às suas inúmeras contribuições em prol das Ciências Mecânicas no Brasil”. É detentor do Prêmio Honorary Session concedido pelo Comitê de Dinâmica da ABCM, em fevereiro de 2007. Medalha da UFSC “Em reconhecimento a sua ação pioneira, na comemoração dos 40 anos de Pós-Graduação na instrituição”. Medalha João David Ferreira Lima, concedida pela Câmara de Vereadores de Florianópolis, “pela sua contribuição ao ensino superior.” É fundador do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Mecânica da UFSC. Criador da Área de Concentração em Vibrações e Acústica e do LVA- Laboratório de Vibrações e Acústica da UFSC. É professor Titular da UFSC, Departamento de Engenharia Mecânica, aposentado.
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