12/02/2015
Diversos minicontos
O Sábio e seu Discípulo
por Almir M. Quites
O respeitado pregador, homem de fé, era conhecido como Mestre. Os cidadãos locais orgulhosamente se autoproclamavam seus discípulos. Um dia, um cidadão timidamente ousou contestá-lo empregando apenas a lógica inata. O debate de cada dia foi curtíssimo, tanto que dá para transcrevê-lo aqui na íntegra. Foram apenas 4 dias.
Primeiro dia:
— Bom dia! - disse o discípulo.
— Bom dia, graças a Deus!
— Mestre, o que é Deus?
Com a paciência de sábio, potencializada por aquela cálida manhã, o Mestre respondeu:
— Deus é o Criador do Universo.
— Mestre, o que é Universo?
Outra vez, a resposta brota fácil e suave de sua sapiência milenar:
— Universo é tudo o que existe.
— Então Deus não existe, Mestre, ou, pelo menos, não existe mais!
O Mestre franziu o humano cenho. Então, o discípulo explicou:
— Se o Universo é tudo o que existe, seu Criador não existe!
Moral da história por outros Mestres:
— "Lastimável o discípulo, que não ultrapasse o mestre" - de Leonardo da Vinci (Anchiano, 15 de abril de 14521 — Amboise, 2 de maio de
1519).
— "O ignorante afirma, o sábio duvida, o sensato reflete" - de Aristóteles (Estagira, 384 a.C. — Atenas, 322 a.C.).
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Segundo dia:
— Bom dia! - disse o Mestre.
— Bom dia! Tudo bem? - respondeu o discípulo.
— Rezei muito, pedi a Deus que me iluminasse. Meditei, durante horas e, por fim, concluí que o Universo é tudo que foi criado por Deus. Simples, não é mesmo?
Com a paciência aprendida, potencializada por aquela cálida manhã, o discípulo replicou:
— Então, o Universo não existia e Deus decidiu criá-lo! Decidir e criar, ambos são verbos que implicam em dois momentos: antes e depois. Então o tempo já existia? Deus criou o tempo antes de criar o Universo?
O Mestre franziu o humano cenho. Então, respondeu:
— O tempo foi criado junto com o Universo. Antes existia apenas Deus!
O discípulo percebeu que algo feria a lógica. Disse:
— Se não havia o tempo, como, então, poderia ele decidir-se pela criação do Universo? Teria ele criado o Universo sem antes decidir-se a fazê-lo? O Universo teria sido criado inconscientemente? Teria sido obra do acaso?
O sábio calou-se. Era hora de meditar mais um pouco.
Moral da história por outros Mestres:
— "O sábio não é o homem que fornece as verdadeiras respostas; é quem faz as verdadeiras perguntas." Claude Lévi-Strauss, França, 1908 - 1995.
— "Do sábio é próprio mudar o parecer." Padre António Vieira, Portugal, 1608 - 1697.
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Terceiro dia:
— Bom dia! - disse o discípulo ao sábio.
— Bom dia, graças a Deus!
— Mestre, o Universo foi criado por acaso?
Com a paciência de sábio numa cálida manhã, o Mestre respondeu:
— Deus é o criador consciente do Universo. Existe uma ordem admirável no Universo. Toda ordem é fruto de uma inteligência ordenadora. Nem o acaso e nem o caos são capazes de gerar ordem. Logo há um ser inteligente que criou o universo de forma ordenada. A isso nós chamamos Deus.
— Mestre, os cientistas dizem que o universo surgiu do Big Bang. O Big Bang não colocou ordem no Universo. Ao contrário, ele causou uma desordem incomensurável. O Big Bang foi um processo exorbitantemente entrópico. Aliás, a entropia continua crescendo!
O Mestre franziu o humano cenho. Então, exclamou:
— Quem é o Mestre aqui?
— Mestre, o caminho para a sabedoria passa pela decifração de enigmas. Se Deus criou o Universo conscientemente, então um Deus Maior criou Deus. E segue-se, pela mesma lógica, que um Deus Ainda Maior criou o Deus Maior. E assim por Diante. A série de Deuses é infinita. Portanto, todos os Deuses da série são criaturas. Criatura significa coisa criada. Portanto, não pode ser Deus, porque os deuses da série não satisfazem aos conhecidos atributos de onisciência, onipotência, onipresença, perfeição, eternidade e de “necessária existência”.
— Deus é eterno! Sempre existiu. Não importa que não compreendamos isso.
— Então, seria melhor, mais honesto, afirmar que não sabemos como o Universo foi criado e que também não sabemos se Deus existe. Presumir demais pode transformar-se em presunção.
Profundamente decepcionado, o Mestre calou-se, mais uma vez. Era hora de meditar mais.
Moral da história por outros Mestres:
— "Eu não acredito em um Deus pessoal, nunca neguei isso, mas expressei isso de forma clara. Se algo em mim pode ser chamado de religioso, é minha ilimitada admiração pela estrutura do mundo, que nossa ciência é capaz de revelar"- de Albert Einstein (Ulm, Alemanha, 1879 - Princeton, EUA, 1955) [Veja aqui]
— "Qual é a primeira coisa que deve fazer quem começa a filosofar? Rejeitar a presunção de saber. De fato, não é possível começar a aprender aquilo que se presume saber." - Epicteto (Hierápolis, 55 - Nicópolis, 135)
— "Para os crentes, Deus está no princípio das coisas. Para os cientistas, no final de toda reflexão." - de Max Planck (Kiel, 1858 — Göttingen, 1947)
— "O fracasso quebra as almas pequenas e engrandece as grandes, assim como o vento apaga a vela e atiça o fogo da floresta." - de Benjamin Franklin (Boston, 1706 — Filadélfia, 1790).
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Quarto dia:
— Bom dia! - disse o discípulo ao sábio.
— Bom dia, graças a Deus!
— Sua meditação foi proveitosa?
— Meditei sobre os atributos divinos como onisciência (conhecimento infinito), onipotência (poder ilimitado), onipresença (presença em todos os lugares), omnibenevolência (bondade perfeita), eterna e necessária existência, incorpóreo (imaterial, subjetivo) e também sobre ser a fonte de toda a obrigação moral, a maior existente, a maior concebível.
— Mestre, o senhor venera um "Deus pessoal", isto é, um Deus que tem uma personalidade. Em outras palavras, um Deus que possui volição, emoções, intenções e outras características humanas. Como então atribuir a ele atributos superlativos como eterno e infinito? Isto cria inconsistências gravíssimas, fatais. Isto agride a Lógica, a qual, só no planeta Terra, desenvolve-se há mais de 3,5 bilhões de anos! A lógica é a matemática enroscada no nosso cérebro.
— A idade da Lógica não vem ao caso!
— Mestre, considere, por exemplo, a onipotência. Pergunto: Deus é capaz de criar um número tão grande que ele mesmo não possa escrever outro maior? Qualquer que seja a sua resposta a conclusão será a mesma, ou seja, Deus não é onipotente! Outra pergunta análoga: Deus seria capaz de criar uma pedra tão grande e tão pesada que nem Ele a conseguiria levantar? Ou ainda: Deus, sendo onipotente, poderia criar outro Deus mais perfeito e mais onipotente que Ele?
— Isso, meu matemático, corresponde a exigir que lhe mostrem um infinito maior e mais abrangente que outro infinito.
— No entanto, caro Mestre, nada é mais adequado quando se discute um Deus onipotente, pleno de atributos infinitos. Onipotência é algo impossível (Omnipotente=Deus). O mesmo para o onisciência (Omniciente=Deus). Se Deus sabe tudo, então sabe que é onibenevolente. Logo, sabe que não pode fazer o mal, não pode mentir. Logo, não pode tudo; não é onipotente. A Onisciência, a onibenevolência e a onipotência são incompatíveis entre si. Se Deus é onisciente, ele sabe que deve intervir para mudar o curso da história usando sua benevolência. Mas isso significa que ele não pode deixar de intervir e, portanto, não é onipotente. É o Paradoxo de Epicuro, mestre, do século 4°, antes de Cristo!
— A lógica de Deus é incompreensível para nós, simples mortais.
— O Sr. não consegue provar a existência de Deus, no entanto afirma que a lógica de Deus é incompreensível para nós humanos. A sua lógica também é incompreensível para mim. Para mim a lógica não pode estar a serviço da fé. Se estiver, transforma-se num engodo. Isto torna inútil este debate.
— Concordo. Fé não se discute.
O Mestre olhou apreensivo para as nuvens que se formavam no céu e disse:
— A discussão está interessante, mas tenho que ir. Vou rezar por você.
Moral da história por outros Mestres:
— “A grande tragédia em ciência é o massacre de uma bela hipótese por parte de um horrível fato” - de Thomas Huxley (Ealing, Middlesex, 1825 - Eastbourne, Sussex, 1895).
— “O começo de todas as ciências é o espanto de as coisas serem o que são.” - de Aristóteles (Estagira, 384 a.C. — Atenas, 322 a.C.)
— “A ciência serve para nos dar uma ideia de quão extensa é a nossa ignorância” - de Hughes Félicité Robert de Lamennais (Saint-Malo, 19 1782 - Paris, 1854).
— “Toda a nossa ciência, comparada com a realidade, é primitiva e infantil – e, no entanto, é a coisa mais preciosa que temos” - de Albert Einstein (Ulm, Alemanha, 1879 - Princeton, EUA, 1955).
— “A ciência se compõe de erros que, por sua vez, são os passos até a verdade.” - de Julio Verne (Nantes, 1828 - Amiens, 1905)
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Nota: mesmo em vida, mas também após a morte de Einstein, muitos crentes atribuíram a ele uma religiosidade que Einstein nunca teve. Inclusive imputaram a ele frases que ele nunca disse. Em 1920, um importante líder judeu ortodoxo de Nova York, o rabino Herbert Goldstein, enviou a Albert Einstein um telegrama com o seguinte questionamento: "Você acredita em Deus? Ponto. Resposta paga. 50 palavras". Ele não precisou de tudo isso para formular a resposta: "Eu acredito no Deus de [Baruch] Espinoza [pensador holandês, 1632-1677], que se revela na harmonia de tudo o que existe, mas não em um Deus que se preocupa com o destino e os afazeres de toda a humanidade", telegrafou Einstein.
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Vejam também:
- A FÉ CEGA!
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- DOUTRINAÇÃO E DESRESPEITO NA UNIVERSIDADE
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