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sexta-feira, 27 de junho de 2014

A FÉ E O ULTRAJE A UM GÊNIO INDEFESO

Almir Quites - 25/06/2014


Eduque, não doutrine! 
Se for preciso, busque informações e estude para entender a diferença! 
O fanatismo conduz ao desrespeito e à desonestidade. 

Circula pela internet um fascinante texto apócrifo. Peço que você leia com atenção o texto em vermelho, e que siga lendo depois os meus comentários.

Alemanha, início do século XX.

Durante uma conferência para universitários na Universidade de Berlim, o palestrante perguntou para a platéia:
 — Deus criou tudo o que existe?
Um aluno respondeu, convictamente:
 — Sim, Ele criou …

 — Deus criou realmente tudo o que existe?

 Perguntou novamente o professor. 
 — Sim, senhor, confirmou o jovem. 
O professor contrapôs: 
 — Se Deus criou tudo o que existe, então Ele criou o mal, já que o mal existe! E se concordamos que as nossas obras são o reflexo de nós próprios, então Deus é mau! 
O jovem calou-se perante o argumento do mestre que, feliz, regozijava-se por ter conseguido mostrar que a fé era um mito.
Outro estudante levanta a mão e diz: 
 — Posso fazer uma pergunta, professor?
 — Claro que sim, respondeu ele. 
 — Mestre, o frio existe?
 — Mas, que  pergunta! Lógico que existe, ou você nunca sentiu frio? – ironizou o professor.
O aluno explicou: 
 — Na realidade, senhor, o frio não existe. Segundo as leis da Física, o que consideramos frio, na verdade, é a ausência de calor. Sabemos que todos os corpos transmitem energia e o calor é uma forma de energia.
 — O zero absoluto – continuou  o estudante – é a ausência total de calor. Todos os corpos ficam inertes, incapazes de reagir, mas o frio não existe. O frio foi criado para definir como nos sentimos quando não temos calor. 
 — E a escuridão existe?  - perguntou novamente o aluno.
O professor respondeu:
 — Sim, é óbvio que existe.
O estudante respondeu:
 — A escuridão tampouco existe, meu caro mestre. A escuridão, na realidade, é a ausência de luz. A luz  podemos estudá-la, já a escuridão não! Através do prisma de Nichols podemos enxergar a decomposição da luz branca nas suas várias cores e seus diferentes comprimentos de onda. A escuridão, não!
 — A escuridão – continuou o estudante – é uma definição utilizada para descrever o que ocorre na ausência da luz.
Finalmente, o jovem perguntou ao professor: 
 — Professor, o mal existe? 
 — Entendo que sim – confirmou o mestre. Aí estão os crimes, a ganância e a violência em todo o mundo. Isto é a comprovação do mal.  
O aluno respondeu: 
 — O mal também não existe, mestre. O mal é simplesmente a ausência do bem. Da mesma forma que os casos anteriores, o mal é uma situação pela ausência de Deus.
E o jovem finalizou:
 — Deus não criou o mal. O mal é o resultado da ausência de Deus no coração dos seres humanos. Da mesma forma que o frio, quando não há calor, ou com a escuridão, quando não há luz.
O jovem foi aplaudido de pé e o palestrante, pensativo, nada mais disse.
O reitor da Universidade, presente à palestra, dirigiu-se ao jovem estudante e perguntou:
 — Qual é o seu nome, rapaz?
 — Albert Einstein.

Assim termina a estória.


Então, gostou? Você se convenceu de que Deus só fez o bem e não o mal? Se você respondeu SIM, então foi enfeitiçado. Doutrinação é feitiço. Rouba você de você! Por favor, continue lendo para entender bem estas afirmações.


Bem, agora apresento os meus comentários. Você vai ver que, além de ser desonesto, quem criou esta estória não entende nada de ciência, muito menos de Física.


Para começar, o texto não esclarece a qual universidade de Berlin ele se refere, mas poderia ter sido a Universidade Humboldt (Humboldt-Universität zu Berlin), que é a mais antiga universidade de Berlim, fundada em 1810 como Universidade de Berlim (Universität zu Berlin). Também poderia ter sido a Universidade Técnica de Berlim (Technische Universität Berlin), fundada em 1879. No entanto, o jovem Einstein nunca foi estudante em Berlin. Ele fez seus estudos em Zurique. Einstein só esteve na Universidade Humboldt de Berlim como professor, em 1914, quando ele já tinha 35 anos de idade. Logo, o cativante texto é uma fraude!

Na fascinante estorinha, o nome do genial e famoso cientista foi usado como argumentum ad verecundiam (ou argumentum magister dixit), o qual é uma falácia. A falácia consiste em concluir sobre o valor da proposição sem examinar seu conteúdo, o que é absurdo. No caso, a conclusão seria esta: "o professor não tem razão porque quem o contesta é Einstein". 


Um argumentum ad verecundiam é uma forte arma de retórica, embora não possua bases lógicas. Trata-se, pois, de uma estratégia desonesta. Usar o nome de um gênio indefeso é uma infâmia.

Vamos agora examinar os argumentos do imaginário estudante identificado como sendo Einstein

O professor da Universidade de Berlin teria dito: " — Se Deus criou tudo o que existe, então Ele criou o mal, já que o mal existe! E se concordamos que as nossas obras são o reflexo de nós próprios, então Deus é mau!"


O suposto brilhante aluno teria então contestado: " — Mestre, o frio existe?". "Mas, que  pergunta! Lógico que existe, ou você nunca sentiu frio?" – teria ironizado o ingênuo professor. Então o aluno teria explicado: " — Na realidade, senhor, o frio não existe. Segundo as leis da Física, o que consideramos frio, na verdade, é a ausência de calor. Sabemos que todos os corpos transmitem energia e o calor é uma forma de energia. O zero absoluto é a ausência total de calor. Todos os corpos ficam inertes, incapazes de reagir, mas o frio não existe. O frio foi criado para definir como nos sentimos quando não temos calor."


Argumento tolo apresentado como Lei da Física! 


Você sente o frio, sofre com ele. O frio até mata, mas, graças a Deus, o que mata não é o frio, mas a falta de calor! (chacota didática). 

Frio e quente são conceitos relativos e correlatos. "Mais frio" é idêntico a "menos quente", ou "menos calor". São expressões diferentes com o exato mesmo significado. Se o frio não existe, então o calor também não existe. Quem cria mais ou menos calor é também criador do menos ou mais frio

O aluno teria perguntado mais: " — E a escuridão existe?" O professor teria então respondido: " — Sim, é óbvio que existe". O estudante então teria contestado: " — A escuridão tampouco existe, meu caro mestre. A escuridão, na realidade, é a ausência de luz. A luz  podemos estudá-la, já a escuridão não! Através do prisma de Nichols podemos enxergar a decomposição da luz branca nas suas várias cores e seus diferentes comprimentos de onda. A escuridão, não!" (Nota: Einstein nunca foi pedante!)


Mais bobagens! A escuridão é apenas a falta de luz visível. Luz visível (ou espectro óptico) é aquela cuja frequência se situa entre 400 e 750 teraherz (tera = 1012); é a porção do espectro eletromagnético cuja radiação é composta por fótons capazes de sensibilizar o olho humano de uma pessoa normal. Identifica-se a correspondente faixa de radiação por luz visível, ou simplesmente luz. A faixa visível do espectro eletromagnético é delimitada, junto à mais baixa frequência oticamente estimulante - percebida como vermelha -, pela luz invisível sugestivamente nomeada faixa de radiação infravermelha, e, pelo lado da mais alta frequência perceptível - entendida como violeta -, pela luz invisível nomeada, de forma igualmente sugestiva, como faixa de radiação ultravioleta. Para frequências ainda maiores que a luz ultravioleta temos ainda os invisíveis raios-X e raios-gama (1020 hertz). Para frequências ainda menores que a da luz infravermelha temos ainda as invisíveis microondas e as ondas de rádio (104 hertz). 

Para cada comprimento de onda pertencente à faixa de luz visível, encontra-se associada a percepção de uma cor. 


A escuridão, ou seja, a luz invisível é estudada sim pela ciência! Muito estudada! Ela corresponde a luz invisível. Logo, erra grotescamente quem diz que "escuridão é a ausência de luz" e que esta "não pode ser estudada pela ciência". A luz visível é uma pequeníssima faixa de toda a luz existente.



Espectro da luz visível.


No espectro da luz, a parte visível é muito pequena. Somos absolutamente cegos para todas as radiações fora desta faixa. Se alguém nos fez, fez-nos assim, quase cegos!

O citado prisma de Nicol, do físico escocês William Nicol (1768-1851), é um dispositivo para a produção de luz polarizada plana. O autor do texto apócrifo errou mais uma vez. Ele queria se referir ao Prisma de Newton

O físico, inglês, Isaac Newton, em 1665, comprou um prisma de vidro (vidro triangular, um simples peso de papel) e observou, em seu próprio quarto, como um raio de sol (vindo de um furo na veneziana) se decompunha ao atravessar o prisma. Sua atenção foi atraída pelas cores do espectro, projetado num papel em raias sucessivas: vermelho, alaranjado, amarelo, verde, azul anil e violeta. Desta maneira ele produziu seu pequeno arco-íris artificial. 

Feita esta ressalva, volto ao argumento do fictício e "genial" aluno. Repete-se aqui o erro anterior.  "Mais escuro" é idêntico a "menos claro", ou "menos claridade". São expressões diferentes com o exato mesmo significado. Se a escuridão não existe, então a claridade também não existe. Quem cria mais ou menos claridade é o criador do menos ou mais escuro. Se escuridão é a ausência de luz, quem a criou?

Finalmente, o jovem teria ainda perguntado ao professor: " —  Professor, o mal existe?" Resposta: " — Entendo que sim".  E o aluno, em apoteose, teria então concluído: " — O mal também não existe, mestre. O mal é simplesmente a ausência do bem. Da mesma forma que os casos anteriores, o mal é uma situação pela ausência de Deus. Deus não criou o mal. O mal é o resultado da ausência de Deus no coração dos seres humanos."

Se "o Mal é o resultado da ausência de Deus no coração humano", então quem criou esta ausência? Repito: se "o Mal é o resultado da ausência do Bem", então quem criou esta ausência? A mudança das palavras pode iludir o cérebro, mas não muda a realidade.

O verdadeiro e jovem estudante Einstein, mesmo sendo do século XIX, não teria argumentado de modo tão tolo.

A essência da pergunta do suposto e menosprezado professor da Universidade de Berlin permanece intacta!

Pelo exposto, interpreto esta estória como um exemplo do que os seres humanos são capazes de fazer, com a sua própria mente, no afã de manter intacta a sua fé, seja religiosa ou política. Manter a fé dá trabalho e custa caro. Implica em constante malabarismo intelectual, para reinterpretar os fatos convenientemente, fechar os olhos e o cérebro às evidências, para conseguir se iludir tão completamente, a ponto de não perceber que assim age.

Cada um é responsável por si mesmo e deve assumir as consequências de seu comportamento. Cada um pode ter sua religião e sua fé (religiosa ou política), mas não deve, em seu nome, cometer injustiças. Foi o que aconteceu neste texto em análise. 

Explico, melhor. 

Mais uma vez (isto é muito comum) o nome de Einstein é usado indevidamente para alimentar a fé dos crentes. Quem criou esta estória simplesmente desrespeitou a memória de Einstein e também a Universidade de Berlin.

Se Einstein estivesse aqui e soubesse disso ficaria certamente bem chateado. Seria mais digno, embora persistissem os erros crassos, apresentar a história como ficção, como um conto, sem envolver o nome de pessoas reais ou de instituição reais. 

Cada um pode ter sua religião e sua fé (religiosa ou política), mas não deve, em seu nome, promover a doutrinação de outros, especialmente das crianças e dos jovens

Doutrinação é o ato de incutir nas pessoas ideologias e/ou crenças, tidas como princípios obrigatórios entre os membros de um grupo ou comunidade, nos mais diversos campos. 

Doutrinação é parente muito próximo da lavagem cerebral. Só difere dela quando não emprega métodos de violência explícita, atendo-se a um envenenamento quase imperceptível e gradual, como na propaganda comercial. A vítima não percebe o que está sendo inoculado e, aos poucos e sem perceber, vai se tornando escrava de grupos ou partidos e acaba como doutrinadora também, num nocivo processo de multiplicação infecciosa. Por isso, costumo divertir-me dizendo: "doutrinação é feitiço".

A necessidade de fortalecer a própria fé religiosa e de disseminá-la tem sido a força motriz para a criação de numerosas pseudociências. Uma pseudociência é qualquer corpo de conhecimentos que se auto-apresente como ciência, mas que não resulta da aplicação de métodos científicos. 

A pseudociência é uma reivindicação, crença ou prática que não adere a um método científico válido, carece de provas ou plausibilidade, não pode ser confiavelmente testada. 

A pseudociência é frequentemente caracterizada pelo uso de afirmações vagas, exageradas ou improváveis​​, uma confiança excessiva na confirmação, em vez de tentativas rigorosas de refutação, e pela falta de abertura para a avaliação e refutação de outros especialistas. 

Há numerosos exemplos de pseudociências, como quiromancia, quiropraxia, homeopatia, apometria, acupuntura, etc. Estas e outras pseudociências são perigosas e invadem até as universidades débeis como um processo infeccioso. Clique aqui para ver uma listagem de algumas pseudociências.

Eu, concordando com Richard Dawkins, considero todas as formas de pseudociência como perigosas, independentemente destas resultarem ou não em danos imediatos para os seus seguidores.

A escola e a universidade deveriam assumir claramente o combate à doutrinação, com fundamento em valores humanos (ver: Declaração da ONU) como a integridade moral e física e a liberdade pessoal, civil e política. 

A doutrinação suprime a liberdade de escolha, especialmente se aplicada a crianças! Estas são as vítimas mais indefesas.

Eduque, não doutrine. Se for preciso, busque informações e estude para entender a diferença! O fanatismo conduz ao desrespeito e à desonestidade. 


Você leu aqui uma história real que mostra muito bem do que o ser humano é capaz quando está fanatizado. 

Tanto na política como na religião, malandrões criam as doutrinas, as ideologias e tratam os fanatizados como brinquedinhos amestrados.
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A estória está também em vídeo

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Um ano antes de morrer, o célebre físico Albert Einstein escreveu, em 3 de janeiro de 1954, uma carta ao filósofo judeu Eric B. Gutkind, expressando sua visão sobre o povo judeu, as religiões e a existência de Deus. O documento foi leiloado no "eBay" de 8 a 18 de outubro. Foi vendida por US$ 3 milhões (mais de R$ 6 milhões).
Estamos excitados por oferecer a uma pessoa ou organização a oportunidade de possuir um dos documentos mais intrigantes do século 20″, disse Eric Gazin, presidente da Auction House (agência que está cuidando da venda), em entrevista ao LiveScience. “Esta carta pessoal de Einstein representa um nexo entre ciência, teologia, razão e cultura”.
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