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domingo, 19 de maio de 2013

A gotinha

 

A gotinha

Chuviscava. Eu a observava atentamente de dentro do carro, mas ela não sabia. Não sabia sequer de minha existência. Era uma gotinha de chuva aderente ao vidro, entre milhares de outras. Uma gotinha diminuta como tantas. Havia outras bem maiores, até imponentes. No entanto, aquela era uma gotinha especial, bem redondinha. Brilhava. Chegava a difratar um leve colorido. Era calma, íntegra em sua alegre convivência com todas as formas de umidade que aderiam ao vidro.

O tempo passava sem que eu percebesse. Estava fascinado.  Mal deu para perceber que muito lentamente ela crescia, alimentando-se da umidade adjacente. Crescia como todas as outras. Gostaria de vê-la por dentro, pensei, com um potente microscópio eletrônico. Penetraria na sua intimidade. Sentiria a sua insuspeita agitação interna e admiraria a inabalável ordem de sua estrutura molecular. Descobriria talvez a existência de seres sub microscópicos, a nadar num oceano infinito. A gotinha diminuta continha um universo em si.

Notei que, com o passar do tempo, ela mudava de forma e exibia um brilho diferente. Outras gotinhas eram subitamente atingidas pelo chuvisco e despencavam vidro abaixo, desfazendo-se. Mas a minha continuava ali, convivendo alegremente com seu meio ambiente. De repente, deu um passinho à frente. Ela já podia andar. Este evento teve a força simbólica de um ritual de passagem. Seria a maioridade?

Outras gotinhas eram subitamente engolidas por uma vizinha maior. Mas a minha continuava ali, querendo evoluir ainda mais.

Outros passinhos se seguiram e foram se tornando mais vigorosos. Em alguns deles ela incorporava em si as gotinhas menores que se postassem em seu caminho e tornava-se mais encorpada. 

Seguiu seu inexorável destino. Deu vários passos rápidos e nervosos. Correu vidro abaixo e se desfez. Dissolveu sua individualidade no processo de recriação da natureza, como matéria prima para uma variedade infinita de novas criaturas.

E haverá chuva... e vida!

(Escrito em Julho de 1977)

 

 Pensamentos

Ser mente aberta não será pior que boca aberta?

Nosso universo é a infinita mutação. O presente é passagem. Tudo que morre inexistirá para sempre; tudo o que nasce será único, nunca existiu. A mortalidade universal é corolário da infinita recriação.

Qualquer fantasia que você faça não será mais bonita ou mais fascinante, nem mais complexa, que a realidade. No entanto, para perceber a realidade, você terá que ser absolutamente sincero consigo mesmo. Só assim você poderá assistir ao maravilhoso espetáculo que a existência oferece. Sem assisti-lo você não poderá compreendê-lo.

Dizem que o milagre só acontece para quem tem fé. Mas, para quem tem fé, o milagre não precisa acontecer, porque sempre será interpretado como se tivesse ocorrido.

O Homem criou Deus à sua imagem e semelhança. Ao adorá-lo, adora a si mesmo. Ao atribuir-lhe a imortalidade, pretendeu atribuí-la a si próprio.

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