Almir Quites (março de 2014)
Parece um conto, mas é também uma crônica de questões crônicas.
Estava eu praticando minha corrida diária, no início da sobrenatural noite hauntinglandesa, quando passou um carro com aquele medonho som automotivo a 120 decibéis de mau gosto. O som era ensurdecedor. Espancava o ouvido como um bate-estaca, que abalava todo o bairro, como se o motorista quisesse berrar: “Eu estou aqui! Jesus Cristo e todo povo, EU ESTOU AQUI !” Parei! Não dava para aguentar. Até os mortos do cemitério se ergueram dos túmulos e foram para a rua para protestar. Vivos e mortos, ninguém sabia mais quem era quem. Todos protestavam energicamente, mas sem perder o gingado típico da terra. Todos usavam máscaras pretas, tanto os mortos, vindos dos túmulos, como os vivos, vindos do programa oficial do governo denominado “Minha Tumba, Minha Morte”.
Como é normal por aqui, a manifestação consistiu em depredar e saquear prédios e equipamentos públicos. Um excitante e funesto carnaval! Houve um terrífico confronto com a polícia, que fora enviada para conter os excessos. Incendiaram ônibus e automóveis, por causa da deficiência do transporte público. A confrontação resultou em mortos, feridos e outras perdas, mas o saldo final foi nulo, como sempre. Por aqui, o Estado é de agitação inútil. Toda a energia se perde no atrito interno.
Agora, espera-se que os ignorantes-sábios analisem os fatos. Aqui todos os ignorantes são sábios e vice-versa.
Por fim, cansados, todos voltaram para suas casas e túmulos. O dia amanheceu em paz. Só se ouvia o tilintar das ferramentas dos garis, que tratavam de limpar as ruas, e o som automotivo dos carros que berravam seus 120 decibéis de mau gosto. Tudo voltara à incomum normalidade.
A TV ainda repetiu as cenas do santo vandalismo por vários dias e cada vândalo ou vítima pôde se ver em cena como herói. Os comentaristas da TV informavam que a truculência da polícia fora a causa do tumulto.
Você conhece Hauntingland, a terra onde os conceitos são tão maleáveis que até os contraditórios se confundem? Não conhece?! Então, explicarei.
Hauntingland é um triste e alegre país tropical no “Southern Hemisphere”, onde o anglicismo é de bom tom, já que o nome do país vem do inglês e foi incorporado à novilíngua por decreto, para assim dar status mais alto ao país e valorizar as almas penadas da nação. Parece lógico? Não? Neste país, a lógica não importa.
Trata-se de uma república democrática. Por aqui, diz-se que o termo democracia origina-se do grego antigo δαίμωνκρατία (daemonkratía ou "governo do demônio"). Demo ou daemon? Isto não faz diferença. Aqui até os extremos se confundem e a soma sempre resulta nula!
Em Hauntingland tem eleições! No último trimestre deste ano (2014), todos os cidadãos vivos e mortos irão às urnas eletrônicas para cumprir com o dever cívico de apertar o sinistro botão CONFIRMA, que sempre confirma a eleição de um demônio. Tudo na mais diabólica paz de Deus!
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